quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Era Verdade

  Nem só sobre a Tropa e a Legião Estelar são meus contos. Para um concurso de contos produzi este texto inspirado nos "Exilados de Capela". O texto é totalmente ficcional.


Era Verdade


  Era verdade. Era tudo verdade! O fim do mundo, o dia do juízo final veio exatamente como profetizado, filmado e propagandeado! Cem anos depois da Grande Guerra, as mudanças climáticas vieram. Nós achamos que fosse uma conseqüência de nosso desleixo com o meio ambiente e até fingimos que iríamos resolver isso, mas era algo ainda mais aterrador... Oh! O desespero. O pânico. A insanidade! A desgraça...
  Fomos avisados por nossos meios tecnológicos, é claro. Eles nunca nos falharam, certo? Como éramos espertos! Apertamos nossos botões e enviamos nossos artefatos destrutivos contra o invasor, mas mesmo nosso tão terrível poder de aniquilamento foi insuficiente para parar o astro vil. Tecnicamente ele passou “ao lado” do nosso planeta. Não foi nem um “raspão”, mas o maldito asteroide desestruturou toda a vida. O eixo mudou, o clima enlouqueceu, o mar subiu e nossa estrela, antes fonte de luz e calor, passou a queimar a tudo e a todos. Foi... foi... foi mil vezes pior do que qualquer pesadelo sobre o inferno e a danação.
  Olho pela janela e vejo a fumaça de centenas de vulcões descomunais cobrindo os céus e impedindo-me de acompanhar o que ocorre na crosta. Estamos muito, muito alto. Daqui vejo todo meu mundo. Daqui, desta sei-lá-o-quê espacial. Há! Nem sei como cheguei aqui, quanto mais o que é isso aqui. Lembro das trevas, da sensação de vazio... e então de acordar aqui, no meio dessa multidão de desconhecidos. Quantos somos aqui? Quem liga? Nossa, essa teria sido uma experiência terrível se eu já não estivesse vindo daquela loucura sangrenta lá embaixo. Depois de ver tantas mortes e de ter sofrido com a desesperante falta de ar do afogamento... isso... lembro disso também... Bom, o que importa é que vir pra cá não foi nada traumatizante. Lógico que também não é nenhum hotel de primeira classe. Isso aqui tem que melhorar muito para ficar péssimo! Afinal, quem se sente bem cercado por lunáticos?
  Vou acompanhando a grande janela sem conseguir desgrudar os olhos do planeta em que vivi. Era uma bela droga de mundo, mas era o meu mundo! E aquela porcaria de pedregulho não tinha o direito de... Gente! Outro demente querendo que eu reze. Esses fracos religiosos me dão repulsa. Todos metidos a certinhos seguidores de regras só porque têm medo do “castigo eterno”. Balela... Aliás, uma das correntes que aqui encontrei defende justamente que morremos e estamos em algum tipo de plano astral intermediário ou qualquer praga dessas. Essas nomenclaturas religiosas nunca foram meu forte. Morto, eu? Estou bem vivo aqui nesta... sala? É. Olhando em volta rio sozinho, lembrando de imediato da outra teoria popular entre meus colegas de clausura. Gente! Eles acham que fomos abduzidos por alienígenas que vieram nos salvar do fim do mundo! Pobres tolos... Pelo menos são criativos...
  De repente, o vozerio conturbado e ensurdecedor cessa por completo. Todas as cabeças se voltam para a única porta do salão que até então permanecia fechada. A expectativa é grande entre todos, mas para a decepção de muitos, entra na sala justamente o que eu esperava ver. Sim, era um homem normal como todos nós. Não era nem um aliem nem um anjo. Apenas um senhor com boa aparência e o semblante sério. Estava bem vestido, com sua manta bem passada e seus braceletes indicando que já passava dos setenta anos. Era forte para sua idade, com seus tentáculos num tom azul bem claro, o que demonstrava também sua linhagem nobre. Com certeza algum político eminente. Como eu nunca me liguei em política, nunca o tinha visto.
Eu já esperava algo assim, com certeza estávamos em alguma nau montada para preservar nossa espécie. Certo de minha razão, voltei a olhar a grande janela deixando-me fascinar pela visão quase hipnótica do grande globo no espaço. Ignorei totalmente o discurso que o político estava fazendo para a plebe que o ouvia em silêncio. Abaixo de nós, o continente extremo-oriental afundava engolfado pelo mar...
  Após uns quinze ou vinte minutos algo ocorreu. Algo estranho o suficiente para me tirar do transe em que estava. Relembrava triste alguns momentos da minha vida quando “aquilo” entrou no recinto. Algo brilhante e quente adentrou no salão iluminando-nos a todos. Muitos dos meus “colegas” ajoelharam-se sobre as patas dianteiras, apatetados. Eu normalmente riria da situação, mas uma incomum sensação de seriedade tomou conta de mim. Surpreendi-me olhando fixamente para o foco de luz amarelo-azulada que posicionou-se no centro do recinto. Sua luz não ofuscava minha vista. Esqueci totalmente do que quer que estivesse pensando e fixei o olho naquela aparição.
Pelas caras de meus companheiros, vi que foi uma surpresa para todos quando a voz dele surgiu em nossas mentes. Era uma voz clara, branda e solene. E, conforme ele ia falando, figuras formavam-se em minha mente, tornando impossível não entender cada intenção daquela luz. Definitivamente eu havia pirado.
  “Irmãos, venho aqui pessoalmente para recebê-los. Sei que estão perdidos e confusos, mas a paz chegará para vossos corações. Atentem para seu antigo lar – vi então a cena de uma lavoura formar-se. – Nele, vocês evoluíram e prosperaram. No caminho de seu progresso, tiveram diversas oportunidades de aperfeiçoamento e, no campo intelectual, as aproveitaram bem. Infelizmente, alguns não entenderam que a sabedoria era tão fundamental quanto o saber, e no campo moral a evolução foi pequena. No último século, chafurdaram-se na lama do ódio, inalaram o gás mortal do orgulho e tomaram a longos goles o veneno da vaidade – formaram-se imagens terríveis de guerra, trazendo-me emoção estranha ao peito. – Hoje, como anunciado por seus profetas, é o dia em que a semente é separada da casca. Aqueles que mais se esforçaram na direção do bem eterno, permanecerão no orbe e reconstruirão sua civilização, agora mais livres e felizes.”
Nesse momento, ele fez uma pausa e nós entendemos que nós não fazíamos parte daqueles que seguiriam mais “livres e felizes”. Uma onda de medo e autopiedade atravessou-me, pois entendi que estava entre as “cascas”, e não entre as “sementes”. Mas o terror não se apossou de mim, nem de ninguém ao redor. A voz dele voltou, agora mais mansa e próxima.
  “Sim, estão certos. Estão deixando o mundo que conheciam. Eu vim aqui para recebê-los em sua nova morada. Não, não vos lamenteis. O que colhem hoje, por vós mesmos foi plantado. – nesse momento uma imagem alienígena formou-se. Vi estranhos seres visivelmente primitivos saindo de estranhas cavernas minerais. Seres bípedes, com apenas dois tentáculos e cobertos de pêlos infestavam um lugar paradisíaco de beleza natural exuberante. – Levarei-os para um novo orbe, onde sua inteligência e cultura em muito serão úteis aos jovens irmãos que lá habitam.”
Nova pausa e nova náusea. Sou gerente de redes sem fio... O que eu ia fazer no meio do mato com aqueles... aqueles animais? A proposta em si era absurda! Baixei a cabeça e, notando algo com minha visão periférica, virei-me para a grande janela para, horrorizado, perceber que outro mundo estava lá fora. Nosso mundo vermelho havia desaparecido! Em seu lugar estava um mundo azul, com um satélite branco... Possuía também mar e continentes, mas as formas e cores eram... erradas! Como viver ali? Que ar azulado era aquele? Havia formações gasosas brancas encobrindo parte da crosta, dando um ar ainda mais alienígena ao estranho globo. Ele então voltou a falar.
  “Irmãos, nada de tristeza. Vocês descerão entre eles como iguais e serão sempre auxiliados na tarefa iluminada que os aguarda. Não se julguem abandonados. Amigos zelarão por vós em todos os momentos e eu mesmo descerei à crosta em tempo oportuno. Não se enganem, não há qualquer castigo nessa situação. Aqui, apenas estamos a lhes dar nova chance de acerto e correção de atitudes. E que melhor maneira de fazê-lo, do que em aproveitamento também destes nossos irmãos que tanto aproveitarão tal oportunidade? Entendam a obra que se lhes apresenta, para não falirem novamente como já o fizeram em seu orbe natal.”
  A luz, ainda sem nome para nós, expandiu-se e uma sensação indescritível tomou conta de mim. Nunca fui sentimental, mas um calor fraterno me “acariciou” no âmago de meu ser e me comovi. Eu, Idgar Rorhi, me comovi. Naquele instante me senti confortável, aquecido e... amado.  Dei nova olhada para o mundo selvagem que me aguardava e, talvez pela primeira vez na vida, aceitei meu destino.


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